Vítima de covid-19, morre em Manaus o ex-zagueiro Palheta

MANOEL FAÇANHA

Se não bastasse à pandemia do covid-19 paralisar o futebol mundial, ela levou a óbito na sexta-feira (1), o lendário Waldemir Palheta Torres, simplesmente o Palheta, 73 anos, o maior zagueiro da história do Independência (AC).

Palheta foi acometido de uma pneumonia e, após exames laboratoriais, foi diagnosticado que era portador do vírus da covid-19, indo a óbito na sexta-feira (1).

Após passagem pelo futebol de base do Nacional e São Raimundo, ambos de Manaus, Palheta, em 1966, ingressou como soldado no Centro de Instrução de Guerra na Selva (Sigs) do Exército Brasileiro. No ano seguinte foi transferido para o Acre, onde reforçou o Grêmio Atlético Sampaio (GAS) para conquistar o título de campeão acreano de 1967. Na temporada de 1968, após a extinção do GAS, Palheta teve propostas de Vasco da Gama e Juventus, mas acertou mesmo foi com o Independência, onde ficou por nove temporadas (1969-1977) e faturou os títulos estaduais (1970, 1972 e 1974).

De volta a sua cidade natal, Palheta recebeu convites do Nacional, do São Raimundo e do Fast Club para voltar aos campos amazonenses. O seu trabalho no Exército, porém, não permitiu que ele pudesse fazê-lo. Somente em 1982, aos 35 anos, é que Palheta, mediante uma licença especial das suas funções, conseguiu jogar outra vez, defendendo as cores do Sul-América. Foi o seu canto do cisne no futebol.

Aposentado do Exército desde 1994, Palheta levava uma vida tranquila na sua Manaus. Depois de trabalhar como empresário do ramo da tapeçaria até o ano de 2014, o ex-zagueiro passou a se dedicar a atividade de líder comunitário, assumindo a vice-presidência da Associação de Moradores do Jardim Petrópolis.

Confira abaixo uma entrevista exclusiva concedida pelo ex-zagueiro ao jornalista Francisco Dandão. Na conversa, ocorrida em 2015, o personagem fala da carreira futebolística e militar, além dos grandes craques e das equipes do GAS e Independência.

 

Palheta: o zagueiro amazonense que fez história no futebol acreano

Francisco Dandão

Os primeiros chutes numa bola de futebol desferidos pelo manauara Waldemir Palheta Torres como jogador de um time federado aconteceram em 1962. Ele, que nasceu em 9 de março de 1947, estava com 15 anos quando estreou na lateral-direita do Fast Club, da sua cidade natal. Daí até 1982, quando encerrou a carreira jogando pelo Sul-América, também de Manaus, foram muitas glórias e troféus conquistados.

Nos anos de 1964 e 1965, Palheta mudou de time duas vezes, passando respectivamente por Nacional e São Raimundo, sempre na condição de juvenil. Mas foi em 1966, ao ingressar como soldado no Centro de Instrução de Guerra na Selva (Sigs) do Exército Brasileiro, ainda em Manaus, que o seu destino de se tornar um dos melhores zagueiros do futebol acreano começou definitivamente a ser traçado.

Grêmio Atlético Sampaio (juvenil) – meados de 1960. Em pé, da esquerda para a direita: (…), Arthur, Asfury, Palheta, Romeu, Hélio Pinho e (…). Agachados: Vasconcelos, Edson Carneiro, Abelardo, Arivaldo e Aldo. Foto/Acervo Edson Carneiro.

 

A mudança entre estados aconteceu justamente por causa do futebol. É que um capitão de nome Dualib, que exercia suas funções na 4ª Companhia de Fronteira, com  base em Rio Branco, entendeu que Palheta era o nome certo para reforçar o Grêmio Atlético Sampaio (GAS), time da corporação que disputava o campeonato de futebol amador do Acre. Convite feito, convite aceito. Palheta se mudou e ficou por dez anos.

Já em 1967, o ano da chegada de Palheta a Rio Branco, ocasião em que ele deixou de ser lateral para tornar-se zagueiro, o GAS sagrou-se campeão estadual. No ano seguinte, porém, o time do Exército nem sequer disputou a finalíssima. Talvez por isso os militares tenham resolvido dissolver a agremiação. Palheta foi, então, defender o Independência, onde permaneceu até 1977, quando voltou para Manaus.

De volta a sua cidade natal, Palheta recebeu convites do Nacional, do São Raimundo e do Fast Club para voltar aos campos amazonenses. O seu trabalho no Exército, porém, não permitiu que ele pudesse fazê-lo. Somente em 1982, aos 35 anos, é que Palheta, mediante uma licença especial das suas funções, conseguiu jogar outra vez, defendendo as cores do Sul-América. Foi o seu canto do cisne no futebol.

Aposentado do Exército desde 1994, Palheta leva uma vida tranquila na sua Manaus. Depois de trabalhar como empresário do ramo da tapeçaria até o ano passado, hoje ele se dedica à atividade de líder comunitário, como vice-presidente da Associação de Moradores do Jardim Petrópolis. Fora isso, uma das coisas que mais lhe dá prazer é contar suas histórias de atleta vencedor. É só alguém puxar a conversa.

De passagem por Manaus para participar de um congresso de pesquisadores de comunicação, eu não poderia perder a oportunidade de encontrar esse mito do futebol do Acre. Acionei o maestro Zacarias Fernandes, um acreano que mora na capital amazonense há 37 anos. Este agendou um encontro com o Palheta. Daí resultou uma boa conversa, cujos principais trechos do pensamento dele vão reproduzidos abaixo.

A passagem pelo GAS

“Eu cheguei no GAS no meio do ano de 1967, ainda com idade para jogar no time juvenil. De início eu não era titular, mas logo fui requisitado para o time principal e, já de cara, sagrei-me campeão estadual. Mas titular mesmo eu só passei a essa condição no jogo de entrega de faixas, quando nós enfrentamos a seleção do campeonato. Entrei, ainda como lateral, que o Chico Alab, que era o dono da posição, havia se machucado… O miolo de zaga do GAS nessa época era formado pelos companheiros Rocha e Viana… Só depois é que eu me firmei como zagueiro central, ao lado do Viana… O nosso time era muito bom… No nosso ataque tinha o Amaral, o Rui Macaco, o Jangito e o Ailton… Olha só quanta gente boa… A seleção tinha ótimos jogadores também, como são os casos do Danilo Galo e do Jérsey, dois que eu lembro agora… Mas eu entrei, joguei bem, e ali consegui a minha vaguinha entre os titulares”.

O fim do GAS

“O que aconteceu para a extinção do GAS, depois do campeonato de 1968, foi que chegou um novo comandante na 4ª Companhia de Fronteira, o major Werther Moraes, um paraense, que foi inclusive professor da Universidade Federal do Acre, que não gostava de futebol. Não queria mesmo nem ouvir falar de bola. Por isso e por uma outra coisa, que eu não vou falar porque não vi, só ouvi falar, então não posso afirmar, ele achou por bem acabar com o time. O certo mesmo é que a extinção do GAS, a desistência do time em continuar disputando o campeonato acreano, não teve nada a ver, como muitos falam por aí, com o fato de que em 1968 nós não conseguimos chegar à final [o campeão de 1968 foi o Atlético Acreano, depois de vencer o Juventus numa disputada melhor de três partidas]. Nada a ver com isso”.

A ida para o Independência

Independência – 1969. Em pé, da esquerda para a direita: Chico Alab, Ociraldo, Hélio Pinho, Flávio, Sapateiro, Palheta e Aldemir Lopes. Agachados: Jangito, Mário Duarte, Dimiro, Bebé, Bico-Bico e Escapulário. Foto/Acervo Paulo Edson.

 

“No final de 1968 eu vim para Manaus, de férias. Naquele tempo a gente tinha direito a 60 dias de folga… Quando eu voltei para Rio Branco, no primeiro semestre de 1969, recebi logo propostas do Vasco da Gama, através do professor Almada Brito, e do Juventus… Inclusive eu ainda cheguei a treinar no Juventus… O professor Aníbal Tinoco era o treinador… Acabei não aceitando a proposta do Vasco e nem ficando no Juventus por causa do capitão Antônio Maia Barbosa… Ele me disse que eu deveria jogar no time do Eugênio Mansour [o Independência]… Eu fui para o Independência ganhando uma ótima gratificação… Um dinheiro maior, duas vezes melhor, do que o que eu ganhava no Exército. Veja só a ironia da coisa: como soldado do Exército eu não podia ter emprego fora, além disso o futebol era amador, mesmo assim eu posso dizer que ganhava muito bem para jogar no Tricolor. Era o chamado amadorismo marrom. E depois, a consideração que os dirigentes do Independência tinham comigo era a melhor possível, isso porque eu nunca bebi, nunca fumei e quando entrava para jogar eu queria ganhar a qualquer custo”.

O melhor time do Independência

Independência – 1974. Em pé, da esquerda para a direita: Zé Lins (diretor), Flávio, Chico Alab, Escapulário, Palheta, Deca e Zé Augusto. Agachados: Bico-Bico, Aldemir Lopes, Rui Macaco, Augusto, Júlio César e Tonho. Foto/Acervo Zacarias Fernandes.

 

“Quando eu cheguei no Independência, em 1969, o meu primeiro parceiro de zaga foi o Praxedes, que era primo, ou irmão, do Jangito. E depois veio o goleiro Agrícola, que também era parente do Jangito. Agora, aquele time do Independência que eu considero melhor que eu integrei foi o seguinte: Zé Augusto; Chico Alab, eu, Deca e Flávio; Zé Maria Escapulário e Aldemir Lopes; Bico-Bico, João Carneiro, Jangito e Tonho. Meu amigo, esse era um time só de craques, do goleiro ao ponta-esquerda… Todo mundo sabia jogar bola, todo mundo jogava muita bola”.

A seleção de 1957

“Embora eu só tenha ido para o futebol acreano em 1967, o futebol praticado no Acre já me era familiar desde 1957. Isso porque veio a Manaus uma seleção de lá com jogadores fora de série. Era uma seleção que tinha o Tinoco no gol… Eu assisti o primeiro jogo da seleção acreana em Manaus justamente atrás do gol defendido pelo Tinoco, lá no Parque Amazonense… O lateral direito era o Escurinho… Completavam a zaga o Antônio Leó, o Mozarino e o Alício Santos… O meio de campo também me encantou… Tinha o Cidico, tinha o Pedro da Burra… E no ataque tinha o Carreon, o Touca, que jogava em todas as posições do setor, o Baú [Aírton] e o Roberto Araújo, que depois foi meu treinador no Independência… Mas um dos que mais me assombraram naquele time foi o Mozarino… Porque naquele tempo tinha muita bola por alto e o Mozarino não deixava passar nenhuma, nenhuma… Sim, não posso deixar de citar também dois outros: o Hugo Sena e o Fued… Como jogava aquela seleção acreana”.

Os dois melhores zagueiros do futebol acreano

Independência 1973 – Em pé, da esquerda para a direita: Zé Augusto, Lelé, Flávio, Palheta, Melquíades e Eró. Agachados: Bico-Bico, Sílvio, Aldemir Lopes, Nostradamus e Bolinha. Foto/Acervo Francisco de Assis Muniz Ribeiro.

 

 

“Tanto jogou o Mozarino, na passagem da seleção acreana por Manaus, que depois, nas peladas de rua, todo mundo queria ser ele… Depois ele foi meu reserva no Independência, mas aí a diferença de idade entre nós era bem grande… O outro zagueiro do Acre que eu considero ter sido excepcional foi o Curica… Eu não saberia dizer qual foi o melhor dos dois… O Curica, que foi soldado junto comigo, era clássico… Dava gosto vê-lo jogar. Apesar disso, do fino trato com a bola e da impulsão tanto do Mozarino quanto do Curica, eu considero que ambos tinham um defeito… É que se o atacante dominava a bola e corria pra cima deles, eles recuavam, fugiam do combate direto. Comigo, por exemplo, não tinha essa: o sujeito tinha que parar ali, vai parar lá [apontando um lugar no chão à sua frente]”.

Experiência no futebol carioca

“Eu saí do Acre em fevereiro de 1977. Fui para o Rio de Janeiro, fazer um curso de formação de sargentos do Exército. Fiquei o ano inteiro na capital carioca. E durante seis meses desse tempo eu acabei sendo inscrito, como amador, no Bangu. O técnico era o Alfredo Gonzalez, ex-zagueiro do Vasco da Gama. Não tive muitas chances… O Alfredo Gonzalez levou vários jogadores de Minas Gerais para o time e, dessa forma, não havia muitas oportunidades para jogar quem não pertencesse a esse grupo. Mas eu ainda cheguei a jogar quatro vezes. O meu primeiro jogo no Bangu foi em Governador Valadares… Nós perdemos por 2 a 1 para o América Mineiro. O segundo [jogo] foi contra o América carioca, na Ilha do Governador, o terceiro foi contra o Olaria e o quarto não tô lembrando agora contra quem foi”.

O melhor parceiro de zaga

“O meu melhor parceiro de zaga foi justamente o irmão do Mozarino, o Deca, que eu só chamava de Sarapó… Não sei se vocês sabem que as luvas [prêmio que um jogador de futebol ganha para a assinatura de um contrato com um clube] do Deca, quando ele foi para o Independência foi um par de sapatos [gargalhando]… Quem intermediou a negociação toda foi o João Carneiro [gargalhando]… O Deca era do Juventus na época… Só que os juventinos nem podem reclamar muito disso porque eles levaram o Emílson da gente… O Emílson foi para o Acre para jogar no Independência, mas o Juventus atravessou a negociação… Aí ficou uma coisa pela outra. Mas eu e o Deca dávamos muito certo… Ele tinha muitos recursos… Era meio agressivo, mas eu tratava de acalmá-lo, orientá-lo… Na realidade, eu era uma espécie de técnico do Independência dentro do campo”.

Um chute na bola, outro no adversário

“Eu tanto sabia jogar bola quanto dar pancada… Quando eu tava com a bola nos pés, saía jogando na boa… A minha primeira opção de passe era sempre o Escapulário… Mas quando o atacante vinha na minha direção, eu não contava conversa, chegava junto mesmo… Isso tanto faz se o cara era habilidoso ou não… Cansei de dar uns chegas pra lá no Bruno Couro Velho, atacante que, todos sabem, batia como gente grande… A questão é que eu entrava sempre pra ganhar… Se eu estava com a bola, eu era clássico; se não estava, era duro… Tinha uns caras de tanta habilidade que não se podia deixá-los se criar… O irmão do Dadão, o Hermínio, tinha uma habilidade fora do comum… Esse era um cara que eu tinha sempre que começar o jogo dando logo um ‘totozinho’ nele… Minha chuteira era aquela Adidas… Eu dava uma pancadinha no tornozelo dos caras e depois pedia desculpas [ri divertido]”.

Injeção para jogar

“Eu cheguei a tomar injeção para jogar sim. Mas foi só umas duas vezes. Eu era militar e não precisava disso para ter resistência… Mas teve uma vez que o próprio médico do clube [Independência], que era o famoso doutor Barral e Barral, receitou. Mandou tomar com ‘Fortimol’… Outra vez o doutor Barral mandou tomar uma Ozonil… Eu repliquei dizendo-lhe que não estava gripado… Mas ele disse que era bom para abrir os brônquios… Ele falou: ‘Tome, quero ver você jogar e dar porrada… Quero ver você bater… Eu gosto quando você bate’… Era um jogo contra o Juventus e o doutor Barral dizia que odiava aquele pessoal… Eu dizia ‘tenha calma, doutor’… Mas ele não queria saber… Uma vez eu tomei Glucoenergan com Fortimol, para esgotamento físico… E depois tomei essa Ozonil… Tudo receitado pelo doutor Barral e Barral”.

Quarta partida

Independência – 1974. Em pé, da esquerda para a direita: Zé Lins (diretor), Flávio, Chico Alab, Escapulário, Palheta, Deca e Zé Augusto. Agachados: Bico-Bico, Aldemir Lopes, Rui Macaco, Augusto, Júlio César e Tonho. Foto/Acervo Zacarias Fernandes.

 

“A quarta partida foi a decisão do campeonato de 1972, jogada em 1973, por causa de um problema nos tribunais. No dia do jogo, eu estava em casa de manhã, quando o pessoal do Juventus foi me buscar para uma conversa. Quem foi me buscar foi o Wagner, que jogava no Juventus e que servia comigo, no quartel… Eu fui… Eles estavam numa chácara lá na Vila Ivonete… E aí, para resumir a história, me ofereceram um cheque de um valor enorme para mudar de time… Era um valor cem vezes maior do que aquele que eu ganhava no Independência… Na época dava para comprar uns cinco fuscas com o valor… Eu achei graça, né? E outra coisa: eu ainda não tinha almoçado… Eles me convidaram para o almoço, que era jabuti no leite da castanha [gargalhando]… No mínimo eu ia pegar uma senhora dor-de-barriga [gargalhando]… Mas aí eu disse pra eles que ia almoçar em casa mesmo, pegar o meu pirão, e que só aceitava conversar sobre a proposta depois da decisão… Nisso já estava espalhado na cidade, pelo Campos Pereira, através da rádio, que eu havia mudado de lado… Fui para o jogo e, para minha infelicidade, fiz um gol contra, coisa que eu nunca havia feito na minha vida… O jogo saiu um a um… Foram noventa minutos de jogo e mais trinta de prorrogação… Graças a Deus, porém, eu fiz o gol da vitória nos pênaltis… Bati de trivela no canto direito do Milton… A torcida invadiu o campo e eu fiquei só de suporte [a sunga da época]. Depois disso, de posse do título, o Independência cobriu a proposta e eu acabei não indo para o Juventus”.